Extrato do artigo: RUMI: A paixão pela Unidade.
[...]
1.
A marca do sufismo
O sufismo é o nome
mais recorrente para designar a experiência mística do Islã, traduzindo uma
“dimensão interior” muitas vezes desconhecida ou desapercebida da tradição
islâmica. O termo sufismo, tradução de tasawwuf,
deriva-se da raíz suf, que em árabe significa lã. De fato, na
experiência primordial do sufismo, os primeiros ascetas revestiam-se com o
hábito de lã, a modo semelhante dos eremitas cristãos, em sinal de penitência e
destacamento do mundo2. A idéia
que predomina é a da “pureza”(safa), sendo o sufi aquele “puro de
coração”, em razão da presença envolvente do Bem Amado. Na busca de uma
definição mais sintética, G.C. Anawati indicou que a mística sufi constitui um
“método sistemático de união íntima, experimental, com Deus”3. Não há, porém, uma definição que esgote
a complexidade do fenômeno. Rûmî ilustrou de forma admirável esta complexidade
através da parábola do elefante, descrita no terceiro livro do Masnavi:
Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto
escuro, e muita gente se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro
demais para que eles pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as
mãos, para ter uma idéia de como ele
era. Um apalpou sua tromba e declarou que o animal parecia um cano
d´água; outro apalpou sua orelha, e disse que devia ser um leque enorme; outro
sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu dorso e declarou
que o animal devia ser como um grande trono. De acordo com a parte que
apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal. Um, por assim dizer,
chamou-o de Dal e outro de Alif 4.
Como
indicou Rûmî, a compreensão do sufismo exige uma capacidade particular de apreensão da realidade, que
escapa ao olhar sensorial comum. Assim como a palma da mão, na parábola
descrita, não consegue captar a totalidade do elefante, da mesma forma o olho
da “percepção sensorial” é incapaz de alcançar
a complexidade do Real. Ele está preso aos limites da “espuma”. Há
necessidade de um salto adiante, no sentido de poder perceber para além da
espuma que se mostra, a dinâmica do Mar que ela escamoteia: “O olho do Mar é
uma coisa, a espuma é uma outra; deixe a espuma e olhe com o olho do Mar”
(MIII, 1270).
[...]
3.
A paixão pela unidade
Na linha da tradição mística sufi, há
em Rûmî uma visceral paixão pela unidade. Esta “consciência do Uno” foi saudada
por Hegel em sua enciclopédia filosófica. Ele destacou no místico a presença
“da unidade da alma com o Uno”, enquanto “elevação sobre o finito e o vulgar,
uma transfiguração da naturalidade e da espiritualidade, na qual o que há de
extrínseco e transitório na natureza imediata, como no espírito empírico e
terreno é absorvido”20. Na base da compreensão
metafísica de Rûmî está a convicção na unidade da existência (wahdat-e-wudjud).
Uma unidade provisoriamente rompida na dinâmica existencial da
individualidade pelo golpe da separação
do espírito humano de sua origem fundamental. O ser humano, como a flauta de
bambu (ney), lamenta esta separação e desterro: “Desde que me separaram
de minha raiz, minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres”
(MI: 2). Há uma nostalgia permanente do ser humano, que anseia retornar à fonte
e à união com o Amado. E o que inspira o lamento da flauta, que sonha a
comunhão, é o amor (MI 12-14). A nostalgia manifesta-se como amor, que não é
senão uma expressão da “sede metafísica”pela unidade. Há em Rûmî um desejo
imenso de Deus, uma paixão pela unidade que “passa além das fronteiras. Da
razão e da loucura. Do inferno e do paraíso. Das confissões. Tamanha a sua
paixão pela unidade que muitos confundiram-no – erro formidável – com um
panteísta. Mas a transcendência no Divã e no Alcorão é total, muito acima da
natureza, que não passa de um espelho de Deus”21.
Não pode haver senão Deus sob o manto do dervixe. Deus em sua Unidade é o
tesouro escondido, mais perto do humano do que sua própria veia jugular. Mais próximo do humano que o vínculo que o
une à sua própria alma. Os amantes são como falenas queimadas na tocha da face
do Amado (MII, 2575). Onde quer que Ele acenda sua flama “miríades de almas
amorosas são queimadas” (MII, 2574).
Para Rûmî, a única e exclusiva
realidade é a unidade. A multiplicidade não passa de aparência e ilusão. Não
pode haver senão unidade da existência.
O véu que, para ele, separa o ser humano de sua origem é o “sentimento
de ser um existente independente e abandonado no seio de uma multiplicidade que
não é senão ilusória”22. Na
visão de Rûmî, em verdade, não pode haver senão Ele, o Amado. As cores,
enquanto símbolos da multiplicidade, constituem uma ilusão, pois a Realidade
não tem cor, e para ela todas as cores retornam.
Como podes ver o vermelho, o verde e o escarlate
A menos que primeiro vejas a luz?
Quando tua vista é ofuscada por
cores,
Essas cores velam de ti a luz.
Mas quando a noite vela essa cores
de ti,
Percebes que só são vistas por meio
da luz (MI, 1121ss).
[...]
4.
O trajeto para a Unidade
Na perspectiva de Rûmî, o horizonte do
ser humano está para além do “eu” e do “nós”. Sua razão de ser está na
permanência do Amado (MI, 1784 e 1788). Não existe “eu” e “nós” no mundo da
Unidade. Mesmo reconhecendo a grande diversidade das formas da criação, da
variedade das almas, como acontece no mundo das letras: as inúmeras diferenças
que povoam o alfabeto árabe, de Alif a Ya, há segundo Rûmî uma unidade integral
que harmoniza as diferenças (MI, 2913-2914). O que é a chama da vela em
presença do sol? O místico argumenta: em essência é existente, mas em realidade
é não existente, uma vez aniquilada pelo sol (MIII, 3671 e 3673). A razão de
ser do humano para Rûmî é ser no Amado. Não há melhor visão do que a visão do
Um (MIII, 2924):
O meu lugar é sempre o não lugar,
não sou do corpo, da alma, sou do
Amado
O mundo é apenas Um, venci o Dois.
Sigo a cantar e a buscar sempre o Um24.
Não é simples o
itinerário que leva o sujeito ao encontro do Amado. Como mostra Rûmî, o Amado
está sempre disponível e presente, ao alcance de uma acolhida. O amante jamais
busca o Amado sem ser antes buscado por ele. O que ocorre, porém, é que nem
sempre o sujeito encontra-se preparado e disponível para abraçá-lo. Há entre
ele e o Amado o elo limitador do “eu”. Para Rûmi, enquanto o ser humano não
destrói o seu “eu” não consegue ser verdadeiramente um amigo de Deus. Para
ilustrar esta idéia, ele desenvolve uma singular história no Masnavi, onde
relata o encontro de um homem que bate à porta de um amigo. Ao ouvir o toque da
batida, o amigo interroga: “Quem és tu, ó homem fiel?”. Em resposta ele diz:
“Sou eu”. O amigo o rechaça, justificando que não é dado o momento de entrar,
pois não há lugar na casa para aquele que não passou pelo fogo da experiência.
Desolado, o homem parte e, durante um ano de viagens e separação, sente o calor
de um coração ardente, que passou pela chama da consumação. Ao retornar para a
casa do amigo, bate à sua porta, com receio, respeito e temor de que uma
palavra descuidada pudesse escapar de seus lábios. Ao bater, o amigo indaga:
“Quem está à minha porta?”. Ele responde: “És tu que estás à porta, ó sedutor
de corações”. O amigo então disse: “Já que sou eu, que eu entre; não há lugar
para dois “eus” nesta casa” (MI, 3056-3063).
Seguindo uma lógica
presente na tradição islâmica, Rûmî assinala que é necessário “morrer antes de
morrer” (M IV, 2271,2272 e 1372). Trata-se de condição fundamental para o
renascimento do ser espiritual (M V, 551)25. Não há como se achegar ao Bem Amado, senão
renunciando à própria vida. É o que diz Rûmî em diversos momentos de sua obra:
“O amoroso busca ardentemene o bem amado: quando o bem amado vem, o amoroso se
vai” (M III, 4620)26. A presença do Amado é
como a chama do amor que, quando se eleva, consome tudo o que não é o Bem Amado
(M V, 588). Nada resta senão Deus. O destino do amante é morrer para si mesmo:
dele só permanece o nome (M V, 2023)27.
Diante de Deus, não pode haver dois “Eu”. Tu dizes
“Eu” e Ele diz “Eu”; ou bem tu morres diante d´Ele ou então Ele que morre
diante de ti, para que toda a dualidade desapareça. Mas Ele não pode morrer nem
objetivamente, nem subjetivamente. Pois,
Ele é o ser vivo que não morre jamais.28
O morrer antes de morrer corresponde
para Rûmî à morte mística, que deve anteceder à morte física. Trata-se da morte
do “pequeno eu”.29 Este estado de
aniquilação do eu e sua absorção no Amado é o ideal místico de fanâ (MI,
3054). Esta absorção no Amado faz com que a condição efêmera do ser humano
transforme-se em realidade eterna, que não morre jamais. Rûmî serve-se do
exemplo da fragilidade da gota d´água, sempre ameaçada pela impetuosidade do
vento e da terra. Ela só se protege do risco de sua dispersão quando é lançada
no mar, que é a sua fonte. No mar, ela está protegida do calor do sol, do vento
e da terra. No mar, sua forma exterior desaparece, mas sua essência permanece
inalterada (M IV, 2615-2618). Para que se dê o acesso ao coração purificado,
que possibilita esta experiência de despojamento radical, é necessário, segundo
Rûmî, captar o sentido espiritual, uma razão iluminada pela luz divina. Não há
outro caminho possível para se alcançar a iluminação, a inspiração divina e a visão mística.
Segundo a compreensão de Rûmî, o acesso
ao sentido espiritual ocorre quando supera-se o limite da percepção sensorial.
O olho do sentido exterior é como a palma da mão que não consegue captar a
totalidade, como sinalizado na história do elefante no quarto escuro. Trata-se
de uma percepção limitada, pois ainda muito agarrada à “concha terrena”; ela só
consegue vislumbrar a espuma que escamoteia a realidade do mar (M V,
1030-1031). O sentido espiritual escapa à percepção superficial que só enxerga
as formas. As formas são tímidas e frágeis diante da realidade. Esta tensão entre
as formas e a realidade percorrerá toda a reflexão de Rûmî no Masnavi, e
servirá igualmente para o seu firme questionamento da escolástica muçulmana
(kalam). Em sua visão, não é possível um
conhecimento fundado na negação da divina providência. Tal conhecimento não
gera senão perplexidade. O verdadeiro conhecimento deve estar permanentemente
sob o influxo de Deus (M IV, 3728-3729)30. Igualmente a ciência dos exotéricos31 é vivamente questionada por Rûmî. São
aqueles que estão limitados às formas exteriores e que se encontram desprovidos
de espírito para penetrar na dinâmica da realidade (MI, 1016-1021). Como indica
Rûmî, “aquele que olha a espuma fala do mistério, enquanto o que olha para o
mar maravilha-se” (M V, 2908). Só aqueles que aprenderam a discernir as coisas
do espírito, que se encontram habitados pelo conhecimento intuitivo de Deus (ma´rifa),
conseguem ver para além das formas e da espuma (M VI, 1460-1461).
De acordo com a visão de Rûmî, o
conhecimento de Deus não vem obtido pelo intelecto ou pelo conhecimento
discursivo (ilm), mas unicamente pela iluminação divina. E o órgão
essencial que faculta esta acolhida é o coração (qalb). Não o órgão de
carne e sangue, mas o órgão espiritual e sutil da percepção mística. Na
tradição sufi, o coração é o “receptáculo cristalalino e proteico capaz de
refletir todas as epifanias ou atributos de Deus: a inesgotável, infinita
manifestação da Divindade na morada da união”32.
Em linha de continuidade com esta tradição, Rûmî indica que “na gota de sangue
do coração encontra-se o dom de uma jóia que Deus não destinou nem aos mares
nem aos céus” (MI, 1017). O coração é “o lugar onde se alçam os raios da lua e
a abertura das portas (da Realidade) para o místico” (MII, 165). O coração físico, purificado e iluminado pelo
amor, deixa de ser um simples órgão de carne e sangue para transformar-se em
órgão espiritual que percebe o invisível. Assim como o coração é a luz que
confere brilho ao olhar, é a luz de Deus que confere brilho ao coração (MI,
1126-1127).
A contemplação do mistério de Deus
possibilitada pela dinâmica do coração exige, antes, a purificação e dilatação
deste órgão. Não há como contemplar a morada do totalmente outro quando o
coração está obstruído. Só depois de purificado de toda imperfeição é que este
órgão passa a refletir o conteúdo profundo do mistério divino (M I,
1394-1396). Trata-se de um processo
longo e complexo, que não se realiza sem a presença de um guia (pir)33. Um passo importante para esta
purificação é a busca da humildade e do desapego, o constante trabalho de
retirada da ferrugem que impede ao coração refletir de forma viva o mistério
que nele habita:
Sabes por que teu espelho não reflete? Porque a
ferrugem não foi retirada de sua face. Fosse ele purificado de toda ferrugem e
mácula, refletiria o brilho do Sol de Deus (MP, 19 e MI 34)
[...]
A presença deste mistério na vida de Rûmî é
tão impressionante que só o silêncio é capaz de dar conta da lâmina de seu
conteúdo. Muitos de seus poemas terminam conclamando o silêncio:
Silêncio!
E depois mais silêncio.
Não use a boca para falar.
A boca é para provar dessa doçura47
[...]
O discurso é pobre face ao explendor do
mistério. Ele recua diante da luz. É como o anjo Gabriel na viagem noturna: não
consegue acompanhar o trajeto do profeta Mohammad diante da força e o vigor da presença do Mistério48.
Guarda-se o silêncio para ver mais claramente, para ouví-Lo falar (MIII,
1305-1307). Segundo Rûmî, “aquilo que um
só olhar percebe, é impossível de manifestar pela língua ao longo dos anos”
(MIII, 1994). Não há como expressar com palavras as alegrias da união com o
Amado. Sobre os lábios dos santos, indica Rûmî, há um ferrolho, mas em seu
coração habitam inúmeros mistérios: “seus lábios são silenciosos, embora seu coração esteja repleto de vozes”
(MV,2238).
Na
visão de Rûmî, a experiência interior do Amado transforma o sentimento e muda a
paisagem. Toda a sua obra é um convite para captar este mundo impermeável às
palavras, um convite para lavar as mãos e o rosto “nas águas deste lugar”48. É no aprendizado deste lugar que se
firma a alma dos nobres, dos que buscam a pureza, dos que conseguem captar e
tornar explêndidos cada som dissonante. Ao contrário dos exotéricos, “comedores
de argila”, os sufis verdadeiros buscam ardentemente a essência. Para Rûmî, é a alma nobre que perdura. As
palavras são acidentes efêmeros, que passam. “As preces rituais, a guerra
santa, os jejuns não perdurarão, mas sim o espírito (que habita a pessoa iluminada)”
(MV, 249).
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